João Candido tinha 17 anos quando da conclusão de “Guerra” e “Paz”. Em entrevista ao G1, ele se lembra de que a ideia inicial era que o trabalho fosse direto para a sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Os painéis eram um presente do governo brasileiro para a entidade. Ocorre que houve, nas palavras de João Candido, “uma grita”: uma pressão para que acontecesse alguma exibição, aqui no Brasil, antes do embarque para os EUA. E assim foi feito. Em fevereiro de 1956, “Guerra” e “Paz” ocuparam o palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
“No dia seguinte, saiu uma matéria no [jornal] ‘Correio da Manhã’, dizendo isto: ‘Agora eles irão irremediavelmente para a ONU. Quem quiser vê-los que vá a Nova York’. Isso me incomodou muito durante todos esses anos”, afirma João Candido.
Antes de chegar a São Paulo, “Guerra” e “Paz” fizeram uma nova escala no Municipal do Rio de Janeiro, em dezembro de 2010. Depois, passaram por um processo de restauro – previsto pelo acordo de empréstimo da ONU –, que durou quatro meses e foi aberto ao público. A versão que estará no Memorial da América Latina vem acompanhada de cerca de 100 dos estudos preparatórios. Existem também documentos históricos. No espaço do salão dos autos, entre os painéis, que ficam de frente um para o outro, há ainda uma grande tela, com uma apresentação audiovisual de nove minutos. Ela exibe, dentre outras coisas, a transformação dos esboços em algumas imagens que foram parar nos painéis.
Edson Motta Júnior, um dos dois coordenadores da restauração, aponta que os painéis estavam em bom estado físico, mas em mau estado estético. “É como se você estivesse bom de coração, circulação, cérebro, mas sua aparência estivesse excessivamente envelhecida”, compara. “Os painéis tinham desbotamentos de pigmentos que comprometiam a sua beleza, sua função estética. Eram expostos num grande hall que dá acesso às principais salas da ONU, ao lado de uma grande janela de 400 metros quadrados, então o sol incidia diretamente sobre os painéis. Durante 54 anos, isso provocou o desbotamento de alguns pigmentos.”
Motta Júnior observa que “restauração não significa necessariamente retoque”. “Muitas pessoas perguntavam se a gente ia retocar o painel inteiro, para reavivar as cores. Na verdade, na restauração você pode reverter danos que ocorrem durante os anos usando recursos outros que não o retoque – é essa a tendência moderna.” Somados, “Guerra” e “Paz” têm uma superfície de 280 metros quadrados. Disso tudo, somente 40 centímetros quadrados foram retocados. “O desbotado foi revertido com resinas apropriadas, incolores. A superfície da tinta volta a ter a mesma intensidade cromática que tinha antes do processo de desbotamento”, esclarece o restaurador.
Envenenamento
João Candido recorda que em 1954, ainda na fase dos “estudos”, Portinari teve “o primeiro ataque hemorrágico”. Era decorrência do “envenenamento por chumbo”, usado na composição da tinta a óleo, que provocaria a sua morte, ocorrida precisamente 50 anos atrás. “Os médicos o proibiram terminantemente de usar tinta a óleo. Quando meu pai ficou sabendo disso, saiu uma matéria no [jornal] 'O Globo’ com ele dizendo: ‘Estou proibido de viver’”. Foi uma das raras vezes, durante a conversa, que João Candido usou o termo “pai”. Na maior parte do tempo, ele prefere “Portinari”.
O "pai" surge novamente quando João Candido é perguntado sobre uma autodefinição – "Sou o sujeito mais triste do universo" – que Portinari teria elaborado ao desembarcar no porto do Rio Janeiro, vindo de viagem a Paris, onde visitara o filho. O caso é narrado no livro "A milésima segunda noite da avenida paulista", coletânea de reportagens de Joel Silveira (1918-2007). "Não sou médico, não posso afirmar com certeza, mas o chumbo afeta o sistema nervoso, e meu pai foi ficando melancólico..." João Candido evoca outros problemas familiares e pessoais enfrentados pelo pintor, como "as acusações falsas de que compactuava com os aspectos ditatoriais do Estado Novo [regime que durou de 1937 a 45, no Brasil]".
Portinari escolheu desobedecer a “ordem médica”, postura que garante a “Guerra” e “Paz” esta aura de cruzada pessoal, de sacrifício. No que contribuem as declarações de João Candido: “Ele tinha consciência [do risco para a saúde]. Mas a [presença na] ONU era a maior oportunidade da vida dele de passar a mensagem de paz”. O site do projeto, aliás, põe em destaque uma entrevista de Portinari, datada de 1957: “‘Guerra’ e ‘Paz’ representam sem dúvida o melhor trabalho que já fiz... Dedico-os à humanidade”.
O fato de o artista não ter podido assistir à “inauguração” da exposição na ONU, em 1957, imprime drama adicional à situação. Comunista, Portinari teria sido excluído da solenidade em função da forte influência que os EUA tinham sobre entidade, opina João Candido. “Não autorizaram a ida do Portinari à ONU, por causa do macarthismo [política de caça aos comunistas, então em voga nos EUA]. Eu acredito que hoje em dia o Brasil não aceitaria que o autor não fosse convidado. Hoje o Brasil é outro.”
A obra
Para além destas questões de bastidores, o que “Guerra” e “Paz” oferece é uma espécie de sumário ou testamento da própria obra de Candido Portinari. Sobre aquelas 28 placas de madeira compensada naval, com 2,2 metros de altura por cinco metros de largura cada, apresentam-se elementos que estão em diversos de trabalhos pregressos do pintor. “O que chama atenção é o valor cromático, da cor. Ele tem uma cor muito bem construída, muito bem feita, nos dois painéis”, avalia Cláudio Valério Teixeira, também coordenador do restauro.
“Uma coisa interessante quanto a esse cromatismo é que Portinari não pensava como homem comum: todo mundo pintaria a guerra com cores quentes, e ele fez o contrário, pintou com tons frios, azul, violeta. E a paz ele pintou com cores quentes, vermelho, amarelo, laranja. Ele fez uma troca.”
Teixeira diz que, na época da primeira exposição no Brasil, em 1956, os painéis sofreram críticas devido à inspiração que Portinari teria buscado em outros pintores. “Mas isso é uma bobagem, só mostra que ele conhecia história da arte e bebia em fontes boas. Todos grandes pintores bebem.” Uma dessas "inspirações" citadas por Teixeira seria Michelangelo, autor daquela que talvez seja a mais famosa pietà.
É o mesmo Michelangelo que, segundo a lenda, ao terminar o seu Moisés, uma das mais perfeitas esculturas jamais feitas, ordenou: “Parla!”. Já Candido Portinari, ao ver expostos “Guerra” e “Paz” no Municipal do Rio, em 1956, emudeceu – "literalmente", recorda João Candido. Permaneceu em silêncio durante uma semana.
Serviço:
Guerra e Paz, de Portinari
Exposição dos painéis pintados por Candido Portinari
Data: de 7 de fevereiro a 21 de abril de 2012
Local: Fundação Memorial da América Latina,
Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664,
Horário: terça a domingo, das 9h às 18h
Visitas guiadas (a partir de 1º de março) para grupos e escolas devem ser agendadas pelo e-mail: educativoguerraepaz@gmail.com
“No dia seguinte, saiu uma matéria no [jornal] ‘Correio da Manhã’, dizendo isto: ‘Agora eles irão irremediavelmente para a ONU. Quem quiser vê-los que vá a Nova York’. Isso me incomodou muito durante todos esses anos”, afirma João Candido.
Antes de chegar a São Paulo, “Guerra” e “Paz” fizeram uma nova escala no Municipal do Rio de Janeiro, em dezembro de 2010. Depois, passaram por um processo de restauro – previsto pelo acordo de empréstimo da ONU –, que durou quatro meses e foi aberto ao público. A versão que estará no Memorial da América Latina vem acompanhada de cerca de 100 dos estudos preparatórios. Existem também documentos históricos. No espaço do salão dos autos, entre os painéis, que ficam de frente um para o outro, há ainda uma grande tela, com uma apresentação audiovisual de nove minutos. Ela exibe, dentre outras coisas, a transformação dos esboços em algumas imagens que foram parar nos painéis.
Edson Motta Júnior, um dos dois coordenadores da restauração, aponta que os painéis estavam em bom estado físico, mas em mau estado estético. “É como se você estivesse bom de coração, circulação, cérebro, mas sua aparência estivesse excessivamente envelhecida”, compara. “Os painéis tinham desbotamentos de pigmentos que comprometiam a sua beleza, sua função estética. Eram expostos num grande hall que dá acesso às principais salas da ONU, ao lado de uma grande janela de 400 metros quadrados, então o sol incidia diretamente sobre os painéis. Durante 54 anos, isso provocou o desbotamento de alguns pigmentos.”
Motta Júnior observa que “restauração não significa necessariamente retoque”. “Muitas pessoas perguntavam se a gente ia retocar o painel inteiro, para reavivar as cores. Na verdade, na restauração você pode reverter danos que ocorrem durante os anos usando recursos outros que não o retoque – é essa a tendência moderna.” Somados, “Guerra” e “Paz” têm uma superfície de 280 metros quadrados. Disso tudo, somente 40 centímetros quadrados foram retocados. “O desbotado foi revertido com resinas apropriadas, incolores. A superfície da tinta volta a ter a mesma intensidade cromática que tinha antes do processo de desbotamento”, esclarece o restaurador.
Envenenamento
João Candido recorda que em 1954, ainda na fase dos “estudos”, Portinari teve “o primeiro ataque hemorrágico”. Era decorrência do “envenenamento por chumbo”, usado na composição da tinta a óleo, que provocaria a sua morte, ocorrida precisamente 50 anos atrás. “Os médicos o proibiram terminantemente de usar tinta a óleo. Quando meu pai ficou sabendo disso, saiu uma matéria no [jornal] 'O Globo’ com ele dizendo: ‘Estou proibido de viver’”. Foi uma das raras vezes, durante a conversa, que João Candido usou o termo “pai”. Na maior parte do tempo, ele prefere “Portinari”.
O "pai" surge novamente quando João Candido é perguntado sobre uma autodefinição – "Sou o sujeito mais triste do universo" – que Portinari teria elaborado ao desembarcar no porto do Rio Janeiro, vindo de viagem a Paris, onde visitara o filho. O caso é narrado no livro "A milésima segunda noite da avenida paulista", coletânea de reportagens de Joel Silveira (1918-2007). "Não sou médico, não posso afirmar com certeza, mas o chumbo afeta o sistema nervoso, e meu pai foi ficando melancólico..." João Candido evoca outros problemas familiares e pessoais enfrentados pelo pintor, como "as acusações falsas de que compactuava com os aspectos ditatoriais do Estado Novo [regime que durou de 1937 a 45, no Brasil]".
Portinari escolheu desobedecer a “ordem médica”, postura que garante a “Guerra” e “Paz” esta aura de cruzada pessoal, de sacrifício. No que contribuem as declarações de João Candido: “Ele tinha consciência [do risco para a saúde]. Mas a [presença na] ONU era a maior oportunidade da vida dele de passar a mensagem de paz”. O site do projeto, aliás, põe em destaque uma entrevista de Portinari, datada de 1957: “‘Guerra’ e ‘Paz’ representam sem dúvida o melhor trabalho que já fiz... Dedico-os à humanidade”.
O fato de o artista não ter podido assistir à “inauguração” da exposição na ONU, em 1957, imprime drama adicional à situação. Comunista, Portinari teria sido excluído da solenidade em função da forte influência que os EUA tinham sobre entidade, opina João Candido. “Não autorizaram a ida do Portinari à ONU, por causa do macarthismo [política de caça aos comunistas, então em voga nos EUA]. Eu acredito que hoje em dia o Brasil não aceitaria que o autor não fosse convidado. Hoje o Brasil é outro.”
A obra
Para além destas questões de bastidores, o que “Guerra” e “Paz” oferece é uma espécie de sumário ou testamento da própria obra de Candido Portinari. Sobre aquelas 28 placas de madeira compensada naval, com 2,2 metros de altura por cinco metros de largura cada, apresentam-se elementos que estão em diversos de trabalhos pregressos do pintor. “O que chama atenção é o valor cromático, da cor. Ele tem uma cor muito bem construída, muito bem feita, nos dois painéis”, avalia Cláudio Valério Teixeira, também coordenador do restauro.
“Uma coisa interessante quanto a esse cromatismo é que Portinari não pensava como homem comum: todo mundo pintaria a guerra com cores quentes, e ele fez o contrário, pintou com tons frios, azul, violeta. E a paz ele pintou com cores quentes, vermelho, amarelo, laranja. Ele fez uma troca.”
Teixeira diz que, na época da primeira exposição no Brasil, em 1956, os painéis sofreram críticas devido à inspiração que Portinari teria buscado em outros pintores. “Mas isso é uma bobagem, só mostra que ele conhecia história da arte e bebia em fontes boas. Todos grandes pintores bebem.” Uma dessas "inspirações" citadas por Teixeira seria Michelangelo, autor daquela que talvez seja a mais famosa pietà.
É o mesmo Michelangelo que, segundo a lenda, ao terminar o seu Moisés, uma das mais perfeitas esculturas jamais feitas, ordenou: “Parla!”. Já Candido Portinari, ao ver expostos “Guerra” e “Paz” no Municipal do Rio, em 1956, emudeceu – "literalmente", recorda João Candido. Permaneceu em silêncio durante uma semana.
Serviço:
Guerra e Paz, de Portinari
Exposição dos painéis pintados por Candido Portinari
Data: de 7 de fevereiro a 21 de abril de 2012
Local: Fundação Memorial da América Latina,
Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664,
Horário: terça a domingo, das 9h às 18h
Visitas guiadas (a partir de 1º de março) para grupos e escolas devem ser agendadas pelo e-mail: educativoguerraepaz@gmail.com
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